– O senhor poderia dar licença?
Virei o rosto de leve, com humor que já me era habitual nesses momentos. Só queria demonstrar que tinha ouvido o pedido e que ia ignorar mesmo assim. A pessoa não podia esperar dois minutos para eu escolher com calma as batatas que ia levar para casa? O povo diz que velho fica impaciente conforme os anos passam, mas tem como manter a paciência quando todo mundo quer atropelar a gente?
Olhei para banca de batatas de novo, firme no meu propósito de, naquele fim de tarde, jantar uma sopa igual às que minha mãe fazia com tudo que encontrasse de mais barato na feira e de aceitável na geladeira. Antigamente, eu ia à feira para escolher os legumes e vegetais do almoço. Mapeei todas as feiras livres da região para nunca ter que fazer compras para mais que dois dias. Mas a crise me fez mudar de hábito. Segui com meu compromisso diário, mas, em vez de manhã bem cedo – velho gosta de madrugar -, tive que me contentar com a xepa. Era o jeito! Com o preço que estavam as coisas e o valor da minha aposentadoria, a xepa estava de bom tamanho.
Sorte que eu não sou de reclamar. E não tenho mesmo motivo de reclamação. Agora posso fazer compras pensando no jantar, minha refeição favorita. E a xepa não está de todo mau. A xepa não vinha de todo mal. Muita gente perdeu a condição de comprar nos antigos melhores horários e as sobras agora não tem mais cara de sobras.
Estava distraído nos pensamentos sobre quantas crises já tinham mudado meus níveis de exigência e sobre quais batatas daquela barraca eu jantaria, quando voltei a ouvi a mesma voz inoportuna:
– O senhor não vai falar comigo?
E desde quando tenho que dar satisfação com quem eu falo ou não? Se não respondi é por que não vou falar, oras! Um homem da minha idade tem que ter a liberdade de escolher as próprias batatas e as próprias respostas. Dessa vez nem olhei para trás. Ela que esperasse eu terminar ou que fosse buscar espaço em outro canto da barraca. O que tinha de tão especial justo no meu pedaço de terra? Batatas são todas iguais!
– O senhor era mais educado, viu?
Pelo jeito a sujeita me conhecia. Admito que fiquei curioso para saber quem era a apressadinha. Pelo jeito ela guardava um histórico dos meus níveis de educação ao longo dos anos. Entre uma batata e outra, olhei para trás, na tentativa de reconhecer a dona da voz.
Era uma velha. Parecia ter a minha idade, mas estar um pouco mais bem conservada. Admito que era bonitona a insolente, mas seus traços não me fizeram lembrar de ninguém. Devia ter feito alguma plástica.
– Não tá me reconhecendo, né? Você também não está igual, Arnaldo, mas eu nunca esqueço um corpo que eu amei, viu? Te reconheci pelas costas.
Ela me chamou pelo nome. Não era uma velha caduca. Mas “alguém que eu amei”? Aí ela me pegou. Puxei minha lista de casos e de amores passados tentando encontrar aqueles olhos castanhos em algum lugar do passado.
Com certeza não era Verônica. Há uns três anos recebi a notícia de sua morte. Uma pena. Queria ter pedido desculpas para ela por todos os dissabores que causei. Catarina também não poderia ser. A última vez que soube, ela morava na Espanha com aquele canalha que a roubou de mim. Uma pessoa nessa idade não ia pegar um avião só para comprar batatas na xepa. Ou ia? Até podia ser Izabel. Pelo que eu sabia, ela estava viva e desafiando a ciência. Mas com o tanto de cigarro que fumava quando era mais moça é impossível imaginar que ela tenha chegado aos 80 com uma voz tão sauve.
– A senhora me desculpe, mas acho que a senhora sabe bem que a idade afeta os neurônios, né?
– Tem histórias que nunca deviam se apagar…
Insolente! Quem era aquela pretensiosa que se achava tão inesquecível?
– Arlete, Arnaldo. Eu sou a Arlete.
Maldita! É claro que eu não lembrava. Tinha feito questão de esquecer. Não eram os neurônios que se iam, mas a saúde mental que tentava ficar.
– Eu tive saudades, sabia?
Virei-me de vez para ela. Tinha que responder de corpo inteiro. No movimento mais rápido que minhas dores nos braços e nos joelhos permitiam, joguei aquela velha maldita em cima da barraca de batatas e voltei andando para casa.
Hoje não ia ter sopa! Resolvi pedir uma pizza.
Por Gabriel Ferreira
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Texto integrante do projeto de exercício literário proposto pela Pragmatha Editora em suas redes sociais. Participe! Em caso de dúvida, converse com a editora Sandra Veroneze pelo e-mail sandra.veroneze@pragmatha.com.br