Promessa e dívida

     Desceu as escadas apressadamente. Não levava nada a não ser uma mochila de couro. Segurava-a com força. Passou por várias pessoas, mas tudo parecia em câmera lenta, embora quase corresse.  Deu de cara com um segurança ao chegar na porta.

     — Oi moça, o mundo não está terminando e aqui calma e silêncio são palavras de ordem.

     Saiu pela porta, olhou para os dois lados da rua e foi para a parada de ônibus. Mal entrou e a porta se fechou, procurou um lugar, colocou a mochila sobre o colo e respirou fundo.

     O coração parecia que ia sair pela sua boca. Não era possível que tivesse feito aquilo, não era sua personalidade cometer um ato daqueles. Na cabeça, um turbilhão de pensamentos.

     Certo ou errado, estava feito, pensou. Não poderia esperar mais nenhum segundo, perderia a coragem e não o faria. Havia passado dois meses, não queria prorrogar aquilo, fora difícil, mas o fizera.

     Aos poucos seu coração foi acalmando, a respiração reduziu o ritmo e deixou cair as lágrimas que segurava. O homem que se sentou ao seu lado, numa das paradas, ficou com pena dela e lhe alcançou um lenço de papel.

     Tirou a máscara de proteção contra a covid e assoou o nariz. Agradeceu a atenção e se acalmou. Espiou dentro da mochila e sentiu um calafrio. Era verdade, conseguira fazê-lo.

     Entrou no pequeno apartamento, chaveou a porta, pôs a segurança especial e, encostada nela, foi resvalando devagarinho até sentar-se no chão. Ficou ali, com os olhos fixos no nada, com o pensamento completamente vazio.

     Deu-se conta do tempo quando viu tudo escuro e só a luz da rua se infiltrava pela janela do terceiro andar. Levantou-se, ligou as luzes, foi até a geladeira, pegou uma coca cola pequena e tomou tudo. A garganta estava seca, não tinha fome, atirou-se sobre a cama e dormiu.

     Quando acordou, a primeira coisa que fez foi verificar a mochila. Agora tinha certeza, cometera um delito grave. Mas era o que tinha planejado por um ano com a irmã, aquela peça era valiosa para sua vida, prometera e cumprira.

     Sentia-se aliviada, fez uma xicara de café e esperou pelo telefonema, sabia que iriam telefonar. Só ela entrara naquele lugar, a única que era autorizada a fazê-lo.

     Durante dois anos Simone sofrera com as cirurgias, químios, rádios e nada mudava. Nos últimos doze meses entrara em coma profundo. Estava desenganada pela equipe médica que retirara o tumor. Vitória passara o ano lendo para a irmã, não sabia se ela ouvia, mas o fazia igual.

     Várias vezes enfermeiras lhe haviam aconselhado a desistir, mas sentia-se bem indo vê-la depois das aulas e lendo algumas páginas para ela, que sempre gostou de romances.

     Observara nos últimos meses qual era a peça que mantinha sua irmã viva, cuidara dos detalhes. Como as enfermeiras agiam, como mudavam os aparelhos, como injetavam os medicamentos.

     Antes da última cirurgia prometera para a irmã que não a deixaria vegetando numa cama por uma vida. A mãe que morava em outra cidade não autorizava o desligamento dos aparelhos, dizia que era como matá-la.

     Mas quem sabe o que pensa, sente ou como vive alguém numa cama, sabendo que não tem retorno? Vitória pensava que devia sentir e sofrer, por isso lia para ela e por isso tomara a decisão.

     Na noite anterior retirara uma parte do respiradouro que mantinha Simone viva. Foi a pior coisa que já tinha feito na vida, mas não a deixaria viver daquela forma. Em parte, sentia-se aliviada.

     O telefone tocou, respirou fundo, sabia que haviam descoberto ou anunciariam a morte da irmã.

     — Alô! — falou baixinho e tremendo.

     — Querida, é a mamãe. Quero que vá imediatamente até o hospital. Até eu chegar, levará uma hora.

     — O que ouve, mamãe?

     — Tua irmã saiu do coma.

     Correu para o hospital e soube que alguém, por descuido, retirara uma parte do aparelho respirador e, como ela continuara respirando sozinha, o médico retirou todos os medicamentos fortes que poderiam impedi-la de acordar.

      Pela manhã acordara chamando por Vitória, que olhou para a irmã sem parar de chorar. Estava fraca, mas teria condições de sobreviver e se movimentar em uma cadeira de rodas. Simone olhou para a irmã e falou:

     — Você prometeu e cumpriu, agora temos um novo recomeço.

Por Verena Becker

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Texto integrante do projeto de exercício literário proposto pela Pragmatha Editora em suas redes sociais. Participe! Em caso de dúvida, converse com a editora Sandra Veroneze pelo e-mail sandra.veroneze@pragmatha.com.br