O chapéu

     Mais três horas e estaria tudo acabado. A situação se complicava para Neiva. Era importante estar na estação de trem na hora certa. Olhou para o relógio de pulso e mentalmente fez uma previsão dos detalhes ainda a resolver. O tempo voaria. Tic-tac.

     Tum-tum, coração acelerado. — O amor é ousadia para a plenitude de um encontro.  Era o que ele sempre dizia pensou, enquanto atravessava a rua. As lojas estavam fechadas. Olhou para a rua, talvez alguma estivesse aberta, mas não viu movimento nenhum. Tudo estava calmo e silencioso, parecia que a cidade tinha se apagado.

     O horário do meio-dia era sagrado naquele pedaço de chão. Isso não aconteceria num lugar grande. Não estava acostumada, mas era crucial achar aquele chapéu. Não seria a mesma coisa sem um de cowboy. Breno não notaria o detalhe, mas ela, sim, sentiria que alguma coisa estaria faltando.

     Parecia ontem. O último abraço, o beijo carinhoso e as lágrimas da despedida. Sua alegria lhe fazia falta, as cavalgadas pela fazenda, o cuidado com os cavalos, a contagem do número de escovadas no pelo, nas crinas e no rabo para deixar um equino brilhando.

     O café quente e gostoso no final da tarde de inverno ou uma cerveja gelada no verão, sentados juntinhos na varanda da casa. O aroma das flores dos cinamomos na primavera ou encolher-se enrolada num cobertor nos dias de chuva, olhando os pingos explodirem na terra seca, levantando um aroma inconfundível. Nenhuma joia poderia ter o mesmo valor.  

     Olhou o pulso, afastou os pingentes de prata da pulseira que ele lhe dera e que tapavam os ponteiros do relógio. Agarrou-se ao pequeno berloque com a forma de um cavalo e fez um pedido, olhando para o céu, que as lojas abrissem mais cedo.

     — Voa o tempo como meus pensamentos, ninguém imagina que o meu está cada vez mais curto. — Falou, enquanto caminhava de um lado para o outro em frente da vitrine. Logo ela, que sempre era pontual, poderia se atrasar, mas não iria antes da compra. O chapéu estava ali, mas a loja não abria.

     Sapateou uma música sertaneja, como se fosse country, ficou embaraçada quando se deparou com o rapaz que abria a loja, olhando parado de braços cruzados e um sorriso maroto nos lábios bem formados, cabelos escuros e olhos esverdeados.

     Perplexa, gaguejou uma desculpa esfarrapada e foi entrando na loja que ele mal abrira. Ainda estava na penumbra e ela foi direto ao chapéu. Esperou ele acender a luz e, colocando o chapéu sobre seus lindos cabelos louros cacheados, pagou imediatamente, apresentando a etiqueta, que já arrancara com cuidado para não estragar a borda onde fora grampeada.

     Entrou no carro e saiu em disparada. Passou por várias fazendas com plantações de trigo, onde o vento formava ondas sobre as folhas ainda verdes. Estacionou perto do estábulo onde João já esperava com dois cavalos encilhados.

     — É hoje, dona Neiva?

     — Sim, é hoje e estou atrasada. Vou ter que ir pelo atalho até a estação. O trem sempre foi pontual. Não seria num dia tão especial que iria atrasar.

     —  Finalmente. — Suspirou fundo e entregou as rédeas do outro cavalo em suas mãos.

     Cavalgou rapidamente por um pequeno matagal, passou pelo grande açude da fazenda e lembrou os bons tempos, com passeios de canoa, pescarias e piquenique no trapiche. Sempre com um bom queijo e um vinho de última safra ou aquele especial que ele mesmo fazia. Ninguém podia fazer ideia do que aquele encontro representava para ela.

     O trem apitou as três horas em ponto. Conseguira chegar a tempo.

     Algumas pessoas desceram, Julia também, apenas com uma mochila nas costas. Foi logo dizendo:

     — Sempre a caráter, como ele gostava, mana.

     — Não seria diferente hoje. Onde está?

     — Na minha mochila.

     Em silêncio, voltaram para a fazenda. Nenhuma queria falar. As lembranças passavam como nuvens nos pensamentos de cada uma. Quando chegaram no açude, foram direto ao trapiche. João abraçou Julia com lágrimas nos olhos. Amarrou os cavalos e ficou observando as duas a uma certa distância.

     Julia retirou uma pequena caixa e Neiva pegou-a, dizendo.

     — Não pode ser somente isso o que restou de papai? É tão pequena.

     Depois de jogarem as cinzas sobre o açude, Neiva atirou o chapéu na mesma direção que o vento levara o pó. Era a maneira dela se despedir. Sabia que o pai, onde estivesse, entenderia o significado do chapéu para os dois.

      — Agora Bruno vai descansar em paz, querida irmã. Era o que queria, o que nos pediu enquanto lutou pela vida naquela cidade grande. Meu tempo por lá terminou. Vou assumir a fazenda, como ele pediu.

      Acabara o tempo do pai, mas uma nova caminhada renovaria a dela.

Por Verena R. Becker   

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Texto integrante do projeto de exercício literário proposto pela Pragmatha Editora em suas redes sociais. Participe! Em caso de dúvida, converse com a editora Sandra Veroneze pelo e-mail sandra.veroneze@pragmatha.com.br