Neve

Naquele inverno nevou um dia. Somente um, que deixou a cidade com jeito de feriado. Não costumava nevar naquelas pradarias. O vento Minuano era um dos empecilhos, segundo os entendidos. Não neva onde tem vento frio e seco; é preciso a temperatura certa, a umidade certa e não ter vento.

Naquela cidade, berço dos guaranis, o vento não dava trégua. As pessoas evitavam as ruas que tinham direção sul ou viviam cruzando de uma para a outra em ziguezague para não dar de frente com o vento. Neve era um fenômeno impossível. Mas aconteceu.

Margarida, Neiva e eu olhamos para fora da janela da sala de aula, como todas outras alunas e a professora, todas amontoadas olhando para uma coisa nunca vista no grande pátio da escola de freiras. A imagem do anjo da guarda no meio do pátio ia ficando branca.

— É neve — a professora falou.

— Nunca nevou, é impossível, professora. — Margarida se arriscou a contestar as palavras dela.

— Fiquem todas nos seus lugares, vou ver o que está acontecendo. — Saiu da sala.

Ninguém voltou ao seu lugar. Aqueles pedacinhos de algodão branco encantavam. Só podiam ser neve. A professora pareceu ignorante com aquela sugestão. Ir ver o que estava acontecendo. Era óbvio, neve!

Voltou com a notícia de que todas deveríamos nos preparar, chamariam cada sala e todas iríamos para casa. A gritaria foi geral. Neve, sair da escola antes da hora, desejo de qualquer adolescente.

Juliana resvalou na escadaria da entrada e foi levada para o hospital, soubemos que quebrou a perna. Só não caía quem tinha equilíbrio, pois as lajotas eram lisinhas e aquele fenômeno congelante as deixava como se houvessem passado sabão.

Durante todo o dia a neve não deu trégua. Vesti cinco pares de meias, coloquei umas botas do meu pai, escolhi o casaco mais grosso e fui para a rua com as gurias.

— Foi difícil convencer minha mãe a me deixar sair, mas como a Margarida passou me convidando, deixou — falei para Neiva.

— Vamos fazer um boneco de neve como nos filmes? — respondeu.

— Vou buscar uma cenoura e uns botões enormes e pretos que minha avó tem guardados. — Margarida foi em busca do material.

O boneco de neve não foi tão grande como o que víamos nos filmes, mas ficou razoável para tirarmos fotos. Todo mundo tirava fotos de tudo. Um acontecimento daquele nível só podia deixar todos extasiados.

Congelando, voltei para casa e fiquei um bom tempo aquecendo meus pés perto do fogão a lenha. Escutei meu pai falar sobre o perigo da neve. Imagina falar em perigo, se era uma coisa tão linda, tão emocionante e uma vez na vida. Quem ia garantir que nevaria noutro inverno?

Mas a fala dele me assustou. A neve pesava sobre telhados simples e poderia virar uma catástrofe, pois não estavam construídos para receber tamanha carga. Poderiam morrer pessoas, além do frio, com o telhado desabando nas cabeças.

Passei a noite acordando. Sonhei com o telhado caindo em cima de mim, o peso era insuportável. Acordei com as pernas da minha irmã caçula no meu pescoço. Migrou para minha cama com medo e com frio.

     Corri para a janela, abri e tudo tinha sumido. Chovia leve, mas nada de neve. Mas para sempre, nas fotos, nas lembranças, todo mundo falava que naquele inverno de 1964 nevara em terra de índios guaranis.

Por Verena Rogowski Becker

Texto integrante do projeto de exercício literário proposto pela Pragmatha Editora em suas redes sociais. Participe! Em caso de dúvida, converse com a editora Sandra Veroneze pelo e-mail sandra.veroneze@pragmatha.com.br