Exercício literário: “O golpe financeiro do século estava prestes a acontecer”

Confira os textos recebidos nesta semana, a partir do exercício literário proposto nas redes sociais da Pragmatha Editora aos domingos. O convite é para desenvolver uma narrativa breve a partir da imagem.

Mudança necessária

Aos cinquenta e oito anos hoje eu, analista do mercado de capitais, decidi a minha vida. Pena que não tenha feito isso antes, porque amarguei em mesas de operações financeiras por mais de trinta anos girando em torno de dinheiro, de estratégias, de profundos estudos de mercados globais que me fizeram entender que tudo era instantâneo, volátil, nada linear. Eu sempre quis paz, apesar de saber que paz não é estabilidade de vida, mas uma paz que serenasse um pouco os meus dias. Eu vinha ganhando muito dinheiro, pois a prática em tantos anos conferiu-me uma segurança natural. Eu investia e ganhava … e muito.

Em certo dia eu soube, por fontes muito seguras, que o golpe financeiro do século estava prestes a acontecer. Como num passe de mágica decidi pedir demissão da empresa na qual estava trabalhando há mais de dez anos e transferir, gradativamente, para não chamar a atenção, a minha pequena fortuna para barras de ouro. Armazenei-as em uma sacola de quinta categoria e rumei para o interior da Itália. Comprei uma casa bem simples, fiz cursos de agricultura sustentável e hoje já estou aqui há cinco anos dividindo amor com uma italiana da Calábria, que vem me ensinando que a vida é muito mais simples do que eu pensava.  Com sessenta e dois anos sinto que estou recomeçando, e esse recomeço dá um sentido profundo demais à minha vida.

A sacola continua guardada no sótão da casa, onde nunca mais pisei.

Por Rosalva Rocha

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O abobalhado

“O golpe financeiro do século está prestes a acontecer”, dizia para si mesmo enquanto batia no próprio peito. Héctor era um rapaz ambicioso, inteligente e astuto. Em pouco tempo ganhou confiança e chegou à vice-presidência daquela grande empresa.

Começou a planejar o seu golpe na empresa. Procurava alguém para levar a culpa. Forjaria provas para incriminar essa pessoa.

Com a proximidade das férias do presidente, assumiria o comando e teria a chance de executar seu plano mais facilmente.

Quando Jeremias chegou à empresa como funcionário da limpeza, Héctor viu nele um alvo fácil. Jeremias era um cara pacato, ingênuo. Meio abobalhado, segundo a avaliação de Héctor.

O golpista diria que Jeremias era um impostor, um espião disfarçado, e que teria provas disso. Sempre dava um jeito de armar situações suspeitas, para incriminar o inocente homem. Tudo filmado.

Quando a bomba estourou, Héctor veio com as acusações e as falsas provas.

Mas havia um espião na empresa realmente. O que Héctor não sabia era que este espião era o dono da empresa, que ali estava, disfarçado de faxineiro, para observar o desempenho dos funcionários. Copiara a ideia de um programa de TV.

Assim, o próprio dono da empresa percebeu todo o golpe que, na realidade, não se concretizou, porque Héctor foi desmascarado e preso.

Por Marilani Bernardes

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Frio na barriga

E lá está ele me olhando naquela sala, só a meia luz, sexy, com seu olhar único e penetrante. Sempre condenei as mulheres que caíam nesses golpes baratos e quem diria, cá estou eu na frente dele. Como pode mexer tanto comigo? Chego a perder o ar. Já ele, não. Sua respiração está serena e profunda, quase como a de um monge em seu momento de meditação. Seu terno importado e seu perfume caro logo revelam que sua natureza é nobre e muito rica. Afinal, aquela pele nunca usou um hidratante barato… E que pele. Nunca toquei numa pele tão macia e sem nenhum tipo protuberância. Tento me aproximar dele, mas ele se esquiva, seu jeito frio me gela a alma. 

—- Querido, não faça assim – falo para ele. Ele simplesmente sorri, meio irônico, mas não facilita o contato.

Sinto que ele tenta mostrar normalidade o tempo todo, mas nada está normal. Essa paz de espírito me irrita às vezes. 

De repente, ouvimos nosso nome ser chamado. Ele parece esperar a minha reação antes de ir para a salinha do cartório. Tem totalmente a noção de tudo que vai acontecer. Mesmo assim se mantém na pose. 

—- Querido, primeiro você. Digo com a minha voz mais amorosa.

Ele se levanta e eu vou logo atrás. Pego na minha bolsa a minha nécessaire. Onde está meu batom especial para essa ocasião? —- penso tateando todos os pertences que lá estão até que o encontro finalmente. Ele é especial porque sua cor é vermelho bem vivo, cor de sangue, o mesmo que posso arrancar com a outra ponta do batom, que é tão pontiaguda quanto uma estaca. Chego com a ponta afiada no meio das costas dele e falo baixinho no seu ouvido:

—- Querido, nada de gracinhas agora. Vamos terminar com isso rapidinho para que todos saiam bem.

Sinto a contração de seus músculos. Afinal, ele sabe que toda aquela familiazinha dissimulada e soberba está em cativeiro bem sombrio e é só um toque meu e todos virão pó. 

Só preciso da assinatura dele para me transferir metade da grana. Acho até que merecia mais por ter sido a esposa disciplinada durante esses anos. O quanto tive que fingir esse tempo todo e aturar as caras de preconceito para mim. Não, eu não pertencia ao mundo deles, mas sem dúvidas sou mais esperta. Deixei todos achando que poderiam fazer de gato e sapato de mim, mas essa gata de rua aqui só veste sapato Louboutin. Não foi tão difícil pegar essa gentinha. Aquele pai nojento que me destratava, mas me assediava tinha mais rabo preso do que político em final de mandato. Só juntei umas peças enquanto ele achava que passava a perna no filho passando a mão na minha coxa. Minha sogra só vivia de luxo e riqueza e me via como a vergonha da família. Logo, foi fácil fazer ela me ignorar. Agora meu marido, esse me fez e refez pensar todo o plano, já tinha desistido várias vezes. Ele mexe comigo demais. Porém, eu era o bibelô que ele levava para mostrar aos amigos e nos eventos, mas me deixava de canto quando estávamos em casa. E agora estamos aqui, sem que ele não consiga me encarar, ele assina e friamente me diz: 

—- Seja feliz.

Sai pela porta ajeitando o terno sem olhar para trás. Seguro que não vou fazer mais nada e certo de que não quer me ver mais na vida. Mágoa e raiva caminham ali. Chego a ficar despedaçada por dentro, quando escuto a voz do funcionário do cartório:

—- Senhora, aqui estão seus papéis e todos seus novos bens.

Leio rapidamente tudo que estava escrito e penso: meu deus!! Nem sei ler esse número todo! Tô rica!!

Olho para o cara do cartório e digo:

—- Amor, sua atuação foi exemplar! Hollywood perde seu talento. Agora vamos! Nova York nos espera.

Por Renata Cavour

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