Exercício literário: “Cena do crime”

Confira os textos recebidos nesta semana, a partir do exercício literário proposto nas redes sociais da Pragmatha Editora aos domingos. O convite é para desenvolver uma narrativa breve a partir da imagem.

Cena do crime

Deixei a sala da minha terapeuta com saudades antecipadas. Afinal, naquele local eu depositara todas as minhas frustrações e as angústias oriundas do meu trabalho na polícia. O último caso de assassinato, não conseguira resolver o que me gerava uma culpa que corroía meu coração. O telefonema da central que recebi no final da consulta poderia ser a minha chance de mostrar o meu trabalho.

Desci as escadas e, ao me encontrar na rua, a viatura já estava chegando para me levar à cena do crime. Recordei as palavras da minha terapeuta quando questionava se minha noção de sucesso ou fracasso se resumia apenas a um evento. Ela tinha razão. Na ponta do lápis, os casos em que tivera êxito em elucidar somavam mais de uma dezena nos meus dez anos de investigadora. Mas eu precisava de mais uma vitória para recuperar minha autoestima.

Chegamos ao local e entendi por que demorara para alguém achar o corpo. Numa descida íngreme, resvalando por alguns trechos, cheguei à beira do rio, onde colegas que eu bem conhecia haviam isolado o local.

— Ela está aqui há mais de uma semana – disse o médico da nossa equipe ao me encontrar. Tirou as luvas e foi se afastando.

Olhei em volta e agradeci por não ter chovido nas últimas semanas, assim teria uma boa chance de encontrar algum vestígio. Ao afastar a capa preta que tapava o corpo, tive certeza de que se tratava daquela moça jovem cuja foto figurava no nosso mural de desaparecidos. Licia era o seu nome. Quem, aqueles olhos que fixavam o vazio, tinham visto pela última vez? Dei uma boa olhada ao redor e no meio da grama achei uma correntinha com um coração onde havia duas iniciais: L.A. Talvez fosse seu nome: Licia Alves ou, se tivesse sorte, poderia indicar alguma história de amor sem desfecho feliz.

Guardei a correntinha em um saco de provas e continuei a vasculhar o terreno. O médico legista teria muito mais informações no outro dia. Aparentemente, não havia mais nada por ali. Assim, comecei a subir a encosta, autorizando o pessoal a recolher o cadáver. Quando estava quase chegando, um pequeno pedaço de papel me chamou a atenção, enrolado num capim, tremulando como uma bandeirinha. Coloquei minhas luvas novamente e com cuidado abri o papel úmido. Algumas letras estavam apagadas, com a tinta escorrida, mas o que eu procurava estava visível. Perdão…

Encontro… nosso lugar… duas linhas borradas… olhei o número 8. Era visível. Deve ter sido 18… no final a letra A… com amor, Álvaro. Guardei o papel com cuidado, entrando na viatura que me aguardava. Não poderia devolver a vida para a moça que ali estava, mas poderia encontrar quem a tirara e, junto, recuperar a confiança perdida na capacidade do meu trabalho.

Por Elsa Timm

…………………………………………………………………

Cena do crime

Se alguém está lendo esse relato é sinal de que eu já passei desta para melhor, ou para pior, talvez, e esta carta foi encontrada debaixo do meu travesseiro no leito de morte.

Quando eu a escrevi, a minha mente já não estava tão lúcida, em razão do estado terminal em que me encontrava. Mesmo assim, quase quinze anos depois, eu ainda conseguia descrever a cena do crime com exatidão de detalhes, sem precisar recorrer aos arquivos da polícia.

A equipe de peritos chegou ao local por volta das vinte horas, cerca de uma hora e quarenta e cinco minutos após ser acionada. Lá chegando, encontrou a área isolada por uma fita amarelo/avermelhada, pela ação das luzes bruxuleantes da ambulância, que aguardava no local para remoção do corpo ao IML. Havia, também, uma viatura da polícia e alguns agentes que faziam a segurança do local.

Eu, que sempre fui um profissional muito elogiado pela seriedade e pela qualidade do meu trabalho e por ser um dos mais experientes da equipe, recebi a incumbência de coordenar os trabalhos da perícia, o que, inclusive, eu já esperava e contava por essa decisão.

Não foi um trabalho fácil de ser realizado, considerando tratar-se de um lugar ermo, na zona rural, pela deficiência da iluminação, que era fornecida por refletores movidos a baterias e pelo risco de o meu trabalho ser contestado por algum dos meus pares.

Assim eu fui observando, coletando e registrando as provas e evidências que me interessavam e, após me dar por satisfeito, nossa equipe deixou o local por volta da meia-noite. Antes, porém, eu solicitei autorização aos meus superiores para retornar no dia seguinte, alegando a necessidade de novas observações, em razão da luminosidade precária do local.

Permissão concedida, no outro dia, logo cedo, cheguei ao local acompanhado apenas por um novato da equipe, que estava em treinamento de campo e constatei que o corpo havia sido removido para o IML e que lá se encontravam apenas dois policiais que passaram a noite em vigília, para evitar a entrada de curiosos.

Então eu me certifiquei de observar detalhadamente todos os aspectos da investigação que eu precisava sobre o caso, para que não houvesse dúvidas ou contestações judiciais.

Voltando à sede, concluí o meu relatório pericial com a qualidade e o embasamento técnico/científico de sempre. As provas não foram contestadas e o caso foi arquivado como suicídio.

O leitor deve estar se perguntando: por que eu resolvi divulgar esse relato no meu leito de morte e como eu tinha todos esses detalhes na memória, mesmo depois de tanto tempo transcorrido?

Para a primeira pergunta a resposta é que, sendo divulgado agora, eu não preciso mais me preocupar com a lei, pois os mortos não podem mais serem julgados.

Respondendo à segunda pergunta: eu tinha tudo na memória porque aquela cena do crime foi um palco montado por mim. O meu retorno à cena do crime, como perito do estado, foi para me certificar de apagar toda e qualquer evidência que porventura eu tivesse deixado escapar no dia do crime e que, então, pudesse me incriminar.

Por Edmilton Torres

…………………………………………………………………………………….

Negação

Olhei de longe, não quis me aproximar, fugi do contato próximo para de certa forma continuar a duvidar.

Enquanto não visse de perto, a questão ainda estaria em aberto e o desfecho incerto.

Sim, assumo minha negação, relutava muito em verificar aquele cadáver frio no chão.

A confirmação do reconhecimento partiria algo irreversivelmente a partir deste momento.

Não tive escapatória, fui obrigado a cumprir a tarefa inglória para análise probatória.

Levantei o pano sujo que o cobria parcialmente e a dor veio pungente.

Como temia, era uma parte minha que via e ali, silenciosamente, se despedia.

Uma persona assassinada pelo tempo inclemente, pelo imediatismo que não soube ser paciente, pelo mundo que não a esperou e seguiu em frente.

Um caminho para sempre fechado, um tom silenciado, um universo apagado.

Mais um hiato que não será preenchido, um marco para não ser esquecido, alguém que eu poderia ter sido.

Claro que me sinto culpado por não ter tentado ser mais ousado e ter deixado esse pedaço de lado, mas não posso mais mudar o passado e ao arrependimento estou condenado.

Tentarei me manter mais forte, lutarei para que essa seja a última morte, fortalecerei o fio e enfrentarei o corte.

Preciso manter minhas perspectivas em aberto, minhas possibilidades por perto; não posso aceitar um destino irreversível e certo.

Resgatarei a momentaneamente distante esperança, pois se perder a crença na mudança, sentarei-me de vez no salão e desisto desta ou de qualquer outra dança.

Por Leonardo Andrade

……………………………………………………………..

Quem mandou?

Após uma denúncia anônima, naquela noite a polícia foi até o parque de eventos. Lá se apresentava a cena do crime: a vítima estendida no chão. Nove tiros. 

Tudo indica que estava trabalhando na eletrificação, pois no local havia uma escada e ferramentas. 

Na noite seguinte, Raul preparava-se para deitar-se. A sua esposa, já aninhada na cama, comenta com ar displicente: 

— Sabe o Lúcio? Foi encontrado morto, ontem à noite, no parque de eventos.

Raul apenas diz:

— Puxa vida!

E pensa com seus botões: quem mandou se meter com a minha mulher e ainda roubar o meu emprego?

Por Marilani Bernardes

……………………………………………………………

Socorro!

Socorro! Alguém entrou e deixou tudo quebrado. Silêncio mórbido, gavetas reviradas. No meio da bagunça, sua foto. Você parecia tão feliz e agora isto. Será que você ainda está vivo? Ainda lembro da sua última gargalhada daquele dia que nos vimos, agora sua imagem está petrificada. É possível ver que você continua a respirar, mesmo que seja quase imperceptível. Seu olhar está fixo, gelado. Isso lembra a nossa troca de olhares naquela esquina semana passada, na qual nenhuma palavra foi dita e somente a frieza de dois conhecidos que fingem nunca terem se conhecido. Como se você não soubesse cada parte minha ou será que esqueceu? Ou será que tudo que foi vivido tivera sido uma doce ilusão? Talvez nem tão doce, talvez nem tão iludida assim. Desprezo, essa era palavra e o sentimento. O ar faltou, a boca perdeu a cor e o coração bateu forte, mas você estava ali, o assassino. As palavras não saem, somente o gesto. O que se tem a dizer nessa hora? Nada. Você está gelado, imóvel, bem na minha frente. Nem a lágrima tem a coragem de escorrer neste momento. As roupas espalhadas trazem lembrança de uma história que começou e terminou. Seu cheiro deixa o ar pesado, não consigo nem ficar tão perto, mas fico. É a última vez que ficarei com você. Deito-me ao seu lado e derramo, então, a única lágrima dessa noite. Estamos os dois inertes, mortos. Mortos um para o outro. Você se levanta, pega a mala e diz adeus atravessando a porta da sala. Ali, foi a cena do crime e a vítima foi o nosso amor.

Por Renata Cavour

………………………………………………………………

O crime

Cheguei logo após o crime. Apavorada, sem entender coisa alguma, questionei sobre o porquê da escada encontrar-se como cena principal do crime, já que inúmeras testemunhas comentaram sobre os tiros desferidos sob Mariah. Seu corpo já havia sido retirado e a escada não teria utilidade alguma, porque eu sabia, mais do que ninguém, que o motivo do crime tinha sido ela mesma, a sua atitude em deixar Fernando após mais de vinte anos de uma vida tão sofrida. Em momento algum pensei ou questionei quem seria o assassino. Eu sabia e, naquele momento, só conseguia olhar a escada chorando e, em certo momento, entender que ela estava erguida para o céu, o lugar para onde Mariah deve ter ido. Não havia mais nada para pensar.

Por Rosalva Rocha

…………………………………………………………………..

A investigação oposta

Caminhando à noite, ali no beco escuro, percebi o sangue derretido na calçada, que parecia estar ainda quente, e indiciava mais um crime em série. Foram muitos assassinatos nos últimos dias e todos estavam com receio de sair de suas casas, principalmente, depois das dezenove horas. Era o meu trabalho, afinal, investigar os homicídios. Eu estava cansado, no entanto, de usar a estrela dourada. Era muito estressante olhar para os detalhes de casa situação e tentar criar uma narrativa do ato. Coletar pistas e chegar à conclusão de algo. O que mais demandava meu intelecto, ainda, era não ser pego na armadilha que eu mesmo criava. Era eu o protagonista do meu filme.

Por Gilberto Broilo

……………………………………………………………………

A cena

Estamos na cena do crime e tem os personagens, o motivo e a arma. A cena montada numa noite escura. Parece que choveu. Um carro parado com a porta aberta, uma escada escorada na árvore, um caminho de chão. Pode ser numa floresta ou apenas um caminho de mato. Os personagens são a polícia que já está no local, examinando a cena do crime. Parece que há dúvidas e são muitas. Não dá para ver nenhum corpo. Não há indícios de nenhum participante no crime. Não está claro o motivo e nenhuma arma no local. Uma cena de crime que vai demorar para ser esclarecida.

Por Roselena de Fátima Nunes Fagundes