Exercício literário: “A chave na placa”

Confira os textos recebidos nesta semana, a partir do exercício literário proposto nas redes sociais da Pragmatha Editora aos domingos. O convite é para desenvolver uma narrativa breve a partir da imagem.

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Um sinal

Placa é indicação, caminho para a alegria ou solidão. Chave é abertura, um chamado para a paixão. Na Ubatuba de Farias com a Flores da Cunha encontrei você, justamente o que me faltava naquele final de tarde de verão. Despretensiosamente olhando para o alto,

avistei uma chave pendurada no poste de luz. Despretensiosamente ali começamos a nossa vida, com um simples sinal, e estamos até hoje juntos, prenunciados por uma esquina vicinal.

Por Rosalva Rocha

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C´est Fini

Tirei a chave da porta, parecia deslocada, torta, guardando uma história que estava morta. Coloquei-a na placa lá fora, saí sem mais demora, minha vida recomeça agora. Nada na casa fazia mais sentido, parece que ser feliz ali era proibido, desisti, me dei por vencido. No ar, um perfume agridoce de saudade, de um tempo em que houve felicidade, mas esta já era uma muito distante e esmaecida realidade. Não nego que vivi bons momentos, belos sentimentos que o tempo transformou em lamentos e tormentos. Os gritos macularem o recanto, passou a imperar o pranto e desapareceu por completo o doce encanto. A tinta descascou da parede, o suporte quebrou e não sustentou mais a rede, o amor passou a agonizar de tanta sede. O clima, de tão pesado, era quase palpável, qualquer palavra tinha jeito inflamável e a mais banal briga sempre inevitável. Não há mais nada que me retarde, saio em silêncio, sem qualquer alarde e com o terrível sentimento que já vou tarde, muito tarde. Num tempo muito distante foi bom, mas de forma quase imperceptível foi mudando o tom, até virar uma incômoda e indesejada marca de batom. Para mim, essa chave na placa representa um inexorável fim, simples assim. Sequer olho para trás, parto em busca da minha paz e aqui não voltarei jamais. A chave pode ficar ao relento, perdida, a casa desabar ou ser demolida, tanto faz, nada disso, a partir de agora, faz parte da minha vida.

Por Leonardo Andrade

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Pendura a chave, meu bem

Não tem nada mais simbólico para mim do que a chave na placa do poste da Rua 07. Espero o dia todo na esperança de encontrá-la lá, reluzente ao cair da tarde. Esse é um sinal de que ela quer me ver à noite e que o caminho está livre para mim. Planejamos isso com muito cuidado, para que ninguém fosse flagrado. A mãe dela sempre disse que eu não era um bom partido, pois quem vive na malandragem só pode ser bandido. Eu não faço nada de mal não senhora, tentei explicar inúmeras vezes. Fico com só no meu jogo do bicho e bebendo minha cerveja enquanto espero o dia acabar. Por isso, minha flor não pode casar comigo e se casou com Aristides. Bem, já deu para perceber como o sujeito é. Nada contra aos outros Aristides, mas esse é o sujeito mais burocrático que já vi. Passou em promissor concurso de banco e veja só, fica o dia todo lá carimbando papel. O bom partido da minha flor é o Aristides. Ganho mais no bicho do que ele, mas ele usa pulover e uma pasta de couro para trabalhar. Só que o santo homem não é tão santo assim e joga poker às terças… E valendo dinheiro, veja só como são as coisas. Para a sociedade, ele diz só que está em sua missão religiosa. Depois o malandro sou eu. Mas é nessa hora que a chave fica na placa do poste, um pouco mais escondida atrás do letreiro de “Trago o ser amado”. Nem precisa de três dias, nem de nenhuma oferenda. A chave abre a porta da felicidade, encontro minha flor e saio antes do full house. Viro a esquina e ao longe já vejo Aristides, que ainda ajusta o pulover e passa um perfume para tentar disfarçar o cheiro do charuto dos colegas da jogatina. Em vão, Aristides, hoje a chave estava no poste e só o sofá lhe resta.

Por Renata Cavour

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A chave no poste 

Me mantive imóvel vários minutos com o olhar fixo no poste. Era inacreditável o que eu estava vendo. Nem o barulho dos carros passando conseguiu desviar minha atenção. Tantos anos depois e acreditei equivocadamente que as chaves não conseguiriam mais transformar minhas noites em pesadelos. 

Uma brisa gelada fez com que eu ajustasse a gola do meu casaco, mas os arrepios percorriam meu corpo. A neblina se transformou em pequenas gotas de chuva, procurei um abrigo, pois tinha deixado meu guarda-chuva na viatura policial.

Olhei em volta. Não havia muita gente na rua a esta hora. Alguns corriam apressados para o ônibus que estava chegando, demoraria mais uma hora para que as lojas abrissem e o movimento de pedestres aumentasse. Uma rua calma, arborizada, não fosse aquela chave pendurada no poste. 

Era a quarta vez que me deparava com uma cena semelhante. As outras três  já faziam mais de cinco anos. Um assassinato, um telefonema anônimo e a chave do imóvel com o endereço que continha o corpo pendurada no poste. Certamente tratava-se da mesma pessoa, o serial killer das outras vezes …. solto por aí.

As vítimas eram sempre mulheres jovens, nenhuma com mais de 25 anos. Sem sinais de estupro, eram encontradas amarradas em cadeiras, com as mãos para trás, amordaçadas e nuas. Todas tinham sinais de queimaduras de cigarro nos braços e pernas, apesar de nenhum toco de cigarro ser encontrado. Uma corda de violão foi o instrumento usado para estrangulá-las, depois de horas de tortura. Eram estudantes de ensino médio e ou universidade e a polícia fez uma extensa investigação procurando encontrar uma relação entre as vítimas. Eu mesma tinha sido encarregada de conversar com os porteiros, professores e estudantes para ver se haviam visto alguém rondando as escolas, mas nada foi descoberto. Os colegas as descreviam como moças tímidas, com poucos amigos e moravam longe de suas famílias, para estudar. Na época pensei que este perfil das vítimas contribuía para que o assassino pudesse ter se aproximado delas, sem chamar atenção.

O telefonema que dava para a delegacia de polícia após o crime sempre era muito rápido: uma voz masculina, estridente, ofegante, revelava um certo grau de ansiedade. Escutara as gravações dezenas de vezes procurando algum ruído ao fundo, para obter alguma pista.

Meu colega investigador voltou com uma escada que posicionou junto ao poste e depois de alguns minutos estava com a chave na mão. Eu ainda tinha esperanças de ser alguma brincadeira de uma mente desocupada, que conhecia as histórias passadas, mas a voz do meu colega se fez ouvir no meio do tráfego:

– Rua Getulio Sardenha, 245. Apartamento 102.

O pesadelo recomeçou.

Por Elsa Timm