Ele maiúsculo

O ônibus chegou e ela desceu. Era numa cidadezinha pequena.  A tia a convidara para passar uma semana, ajudaria no aniversário do padrinho. Faria cinquenta anos e uma festa grande seria realizada. Todo auxílio era aceito com satisfação.

Desceu, olhou ao redor e ficou sem saber qual o caminho que deveria tomar naquele cruzamento. Viu um bar na esquina, assim que a poeira do ônibus baixou, depois de arrancar numa velocidade nem tão normal para uma cidade pequena – talvez mal de arranque ou motorista barbeiro.

Dirigiu-se ao dono e perguntou em que direção ficava a casa de sua tia Irena Bauermann. Um rapaz, que vestia uniforme de escoteiro,  olhou para ela e, enquanto o dono do bar tentava explicar, prontificou-se a acompanhá-la.

Foi uma experiência diferente ver um cara alto de calças curtas, chapéu de abas largas e lenço no pescoço, mas educado, querer acompanhá-la. Não que fosse uma figura engraçada, mas as pernas peludas não combinavam nada com aquele olhar azul que ela logo notou.

Aceitou a companhia.  A conversa, durante a caminhada, rolou fácil, como qualquer assunto entre jovens. Mas a sensação dele ser moreno, cabeludo nos braços e nas pernas a deixava com vontade de rir.

Talvez fosse por não ter irmão e seus parentes rapazes, serem loiros ou ruivos, nunca lhe chamará a atenção para outros rapazes de calção. Morava longe do mar e o máximo de encontros para banhar-se eram os açudes na fazenda de sua avó. 

O uniforme de calças curtas, ela não sabia por que, mas sua vontade era de rir, apesar das explicações sobre estar vestido de uniforme, porque era chefe dos escoteiros da cidade. Ela mal continha a vontade de sentar-se no chão e dar umas boas gargalhadas.

Agradeceu, quando chegaram na casa da tia, pela gentileza, e ele simplesmente respondeu que se veriam na festa. Era amigo da família. Cheio de si, naquele uniforme de chefe, virou as costas e foi embora. Nem haviam se apresentado, pensou depois, mas a alegria da tia e da prima fizeram com que esquecesse o rapaz peludo.

Na festa ele até tentou falar com ela. Estava bem-vestido, de camisa branca, penteado impecável. Mas, com o pacote, vinham aqueles olhos azuis que pareciam penetrar nos seus pensamentos. Evitava os lugares onde ele estava.

Naquela noite, a prima dela contou, através de sua fala grotesca e sinais, que ele tinha várias namoradas. A prima era surda, aprendera a falar daquela maneira, e só quem a conhecia bem, entendia. Era necessário saber um pouco sobre libras, os sinais das mãos, mas as duas se davam muito bem e fofocas e segredos eram trocados constantemente.

Achou bom saber sobre ele. Não ficaria pensando naqueles olhos azuis, mas sonhou com eles olhando para ela como se conseguisse desnudá-la até o último pensamento. Ou seria sentimento?  Já não importava, tinha sua reputação e ela não faria parte daquela lista.

Depois de um tempo, voltou a visitar a tia com os pais. Fizeram um churrasco e ele estava lá.  Os pais dele também, mas ninguém sabia que ela tinha medo daqueles olhos azuis. Não sabia explicar por que, mas os evitava. Um namorador não fazia seu tipo.

Durante o churrasco, ele foi convidado a cantar. Descobriu o apelido dele, Galo. Seria galo por cantar bem ou por ter muitas namoradas? Essa foi uma das dúvidas que não a deixavam ceder ao olhar azul que a perseguiam sempre que se encontravam.

Mas o azul é uma cor forte, cor do céu, cor do mar, das hortênsias, da delicadeza, do seu time. Aos poucos ele foi conquistando-a. Aqui, ali, no encontro dos seus pais com os tios, nos passeios, nos churrascos, nas pescarias e no mesmo amor que sentiam pelos animais.

Ela nunca poderia ter imaginado, ao descer daquele ônibus, que seu destino estaria selado para sempre com aquele rapaz engraçado, escoteiro, peludo, mas de olhos azuis, penetrantes e encantadores de almas.

Por Verena Rogowski Becker

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Texto integrante do projeto de exercício literário proposto pela Pragmatha Editora em suas redes sociais. Participe! Em caso de dúvida, converse com a editora Sandra Veroneze pelo e-mail sandra.veroneze@pragmatha.com.br