“Deixava o texto repousar e depois voltava a ele para revisar”

Tudo começou quando Eduardo Guilhon Araújo visitou um hotel fazenda de apelo bem histórico no Rio de Janeiro. A curiosidade o levou à pesquisa e o gosto pela escrita criativa à transformação das informações em narrativa. O formato escolhido? Contos. O resultado é “A Quimera do Torto – um olhar oblíquo pela história do Brasil século XX”, que está sendo lançado pela Pragmtha. Nesta entrevista, o autor fala sobre suas percepções e processo criativo.

Você optou por ter como narrador um terceiro personagem, anônimo e de certa forma desimportante para os fatos históricos abordados. Em que aspectos isso o desafiou como escritor?
Há apenas um conto que é narrado por um morto (sim, a la Braz Cubas). É “O Civil” que dedica-se ao único civil da famosa foto da Revolta dos 18 do Forte. Achei inusitado aquele civil ali que provavelmente nem sabia mexer em armas. A terceira pessoa lhe permite criar mais, explorar mais, o que acho generoso ao escritor.

Que critérios você utilizou para escolher os fatos que compõem o livro?
Eu limitei ao século XX, então busquei fatos históricos deste século. Também por curiosidade explorei um pouco a evolução urbana da minha cidade, Rio de Janeiro, que foi sempre muito rica. Quis trazer também lugares que não existem mais e que poucas pessoas têm este conhecimento. O que me surpreendeu nos fatos pesquisados foi uma certa constância militar. Bem ou mal a história do Brasil no século XX passa bastante pelos militares. Eles aparecem em vários contos. Minha cidade foi capital da Colônia, do Império e da República. Então para quem mantém o olhar atento, o Rio de Janeiro é um museu ao ar livre. Muitas vezes vou correr no centro da cidade, onde há inúmeros monumentos históricos. A própria foto que ilustra a capa eu mesmo tirei correndo. É a última ladeira do finado Morro do Castelo. Um dos contos aborda justamente um suposto tesouro dos jesuítas (fato ou lenda?) que pensava-se que existia ali. Esta história causou bastante frisson na época.

De todos os contos, você tem preferência por algum?
Pergunta difícil. Deixei alguns segredos nos contos, não sei se todos vão perceber. Por exemplo, há um conto continuação de outro, mas não cito isto. Deixo para o leitor descobrir. Há também um que misturo com o refrão de um samba, o que foi interessante. O “A Escada” foi legal como desafio de abordar duas épocas tão distintas. O que menciona sobre o deputado no Planalto é realmente pelo fato que a pessoa abordada tinha um bode que se chamava mesmo “deputado”. Enfim, escolher um é complexo. Deixo para cada leitor escolher o seu próprio.

Na escolha dos fatos históricos, você avançou bastante no passado. Isso expandiu o processo criativo, por dar bastante margem para a imaginação?
Sempre quis um pouco de história com muita ficção. Então deu para ser bem criativo, explorar lacunas na história, colocar personagens ali, criar histórias para eles. Sempre há pessoas que ficam famosas para a história, mas acredito que muitas outras não ficamos nem sabendo.

Se daqui 40 anos você quiser escrever um livro, nos mesmos moldes, abordando a época que vivemos hoje, em que aspectos será mais fácil e em quais mais difíceis?
Bom, nossa época está sendo vasta de fatos interessantes para se explorar, seja o eterno conflito político, seja pela pandemia. Acho que daria para explorar bastante, tornando o trabalho do escritor mais fácil neste sentido. Não vejo dificuldades, mas certamente maior estabilidade democrática, algo que só alcançamos no final do século XX. A instabilidade democrática acabou gerando vários contos. Mas sempre lembro que escrevi sobre um século apenas. Há outros quatro anteriores na história do Brasil. Fica em aberta a possibilidade.

Seu texto é clássico, charmoso. A própria estrutura narrativa avisa que é uma leitura para ser feita com calma e degustada. A impressão que se tem é de que o próprio processo de escrita seguiu uma certa ritualística, um cuidado, um estar atento ao primor. Como é seu processo de inspiração e escrita?
Obrigado pelo elogio! Neste caso específico cada conto começava com o estudo dos eventos históricos do século XX. Ao definir um tema, lia bastante sobre ele, pesquisava protagonistas e também pessoas que poderiam ter participado. Aí procurei descrever uma ficção perto daquele fato histórico, abordando-o, mas também criando uma história por perto, deixando a imaginação voar. Nestes longos meses isolados em casa, ia para a mesa da varanda e escrevia depois de pesquisar o assunto. Deixava o texto repousar e depois voltava a ele para revisar. E assim foi.

O que esta obra representa para você?
Um certo clichê, mas a realização de um sonho. O esboço inicial deste livro já estava nos meus alfarrábios há uns 10 anos. Veio a pandemia, o home office, e achei que era o momento de finalizar, escrever novos contos e fechar o livro. Espero que seja o primeiro de muitos. Uma hora você precisa tirar o sonho da gaveta ou dali ele nunca sairá.