Cinco curiosidades sobre “um certo cinema gaúcho”

O cineasta Ivanir Boca Migotto lançou neste ano, no Festival de Cinema de Gramado, sua obra “Um Certo Cinema Gaúcho de Porto Alegre Ou Como o cinema imagina a capital dos gaúchos”, pela Pragmatha Editora (adquira pelo WhatsApp 51 99286-3282). Perguntamos a ele cinco curiosidades sobre o cinema gaúcho. Confira:

1. Tudo começou com um longa-metragem amador, filmado em uma bitola caseira.

Deu pra ti anos 70, de Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti, filmado em Super-8, uma tecnologia que, na época, era utilizada apenas para registros domésticos, de festas de famílias, é considerado o ponto de virada que inaugura uma tradição de quase 40 anos: filmes que em vez de retratarem a cultura campeira, passam a refletir a urbanidade porto-alegrense nas telas dos cinemas.

2. Esse certo cinema gaúcho de Porto Alegre começou com uma série de longas, mas foi um curta-metragem que garantiu sua continuidade.

Depois de Deu pra ti anos 70, vários outros longas em Super-8 e também em 35mm, marcaram os primeiros anos de realizações da geração que inaugura essa tendência. Quando, então, finalmente estão prontos para se profissionalizarem, com suas produtoras estruturadas, o governo Collor extingui a Embrafilmes e, com isso, praticamente toda a produção cinematográfica no Brasil. Cineastas de todo o país migraram para a realização, apenas, de curtas-metragens. Foi quando, através de um processo de seleção interno, na recém fundada Casa de Cinema de Porto Alegre, chamado “Foda-se”, surgiu o roteiro para a realização do Ilha das Flores, de Jorge Furtado. O curta-metragem arrebatou quase todos prêmios no Festival de Gramado, recebeu prêmios no Brasil e no exterior, sendo que o Urso de Prata, em Berlim, chamou a atenção do mundo para a turma que fazia cinema na provinciana Porto Alegre. Graças ao Ilha das Flores Furtado foi convidado para trabalhar na Globo e a Casa de Cinema assinou coproduções internacionais. Dentre várias coisas, isso garantiu a sobrevivência da produtora até a “retomada do cinema brasileiro” e, também, o sucesso do curta-metragem motivou as novas gerações a experimentarem aa carreira audiovisual.

3. Esse certo cinema gaúcho de Porto Alegre deve muito à televisão.

O nome da produtora é Casa de Cinema de Porto Alegre, mas poderia ser Casa de Televisão do Rio de Janeiro. Isso porque, a principal e maior produtora do Rio Grande do Sul também se sustenta através da longínqua parceria com a TV Globo. Dessa forma, ter seu endereço em Porto Alegre é quase que apenas uma formalidade, uma vez que, se dependesse do mercado gaúcho, possivelmente não teria conseguido se consolidar como grande produtora audiovisual. Mas não é só a Casa de Cinema que depende da televisão. Todo o cinema viável economicamente, mesmo antes da Netflix, sempre dependeu da parceria com as televisões. Especificamente no Rio Grande do Sul, é preciso destacar o importante papel que a RBS TV desempenhou ao longo de mais de uma década, incentivando a produção audiovisual de conteúdo local e, assim, oportunizando um certo mercado de trabalho para os profissionais da área, bem como um espaço para o surgimento dos novos talentos. A Clube Silêncio, produtora percebida por mim, na pesquisa, como herdeira direta da experiência da Casa de Cinema – embora vá apresentar novas propostas para um novo cinema gaúcho – teve, nas parcerias com a RBS TV, não apenas um espaço para experimentações mas, inclusive, foi dessa parceria que nasceu o longa-metragem A última estrada da praia, de Fabiano de Souza.

4. Um estrangeiro em Porto Alegre contribuiu com um novo cinema gaúcho.

Porto Alegre sempre prestou muita atenção a opinião dos estrangeiros. E isso, quem diz, é Sandra Pesavento, uma das mais importantes historiadoras da cidade. Dessa forma, vários estrangeiros são famosos entre nós mas, certamente, o principal deles é Albert Camus. Quando da sua passagem rápida pela capital, foi extremamente bem recebido. Infelizmente, segundo alguns escritos seus, parece que a capital dos gaúcho não havia provocado, nele, uma boa impressão. Suas poucas palavras sobre Porto Alegre viraram quase lenda e sua visita é o mote para o curta-metragem Um estrangeiro em Porto Alegre, de Fabiano de Souza. Décadas depois, um outro estrangeiro foi extremamente importante para o cinema realizado na capital. Beto Brant, em parceria com seu sócio Renato Ciasca, escolheu Porto Alegre para filmar Cão sem dono. Para coproduzir o filme, em vez de optar pela estrutura profissional da Casa de Cinema de Porto Alegre, preferiu a leveza da recém criada Clube Silêncio. Dessa coprodução nasceu o longa-metragem que, segundo o crítico de cinema Marcus Mello, é “o mais porto-alegrense dos filmes realizados no Rio Grande do Sul” e, mais do que isso, a influência dos diretores paulistas sobre a jovem produtora gaúcha foi fundamental para inaugurar uma nova tendência desse certo cinema gaúcho de Porto Alegre.

5. Os longas-metragens realizados por esse certo cinema gaúcho de Porto Alegre nos últimos 40 anos funcionam como espelho da transformação da capital nesse mesmo período.

O livro atravessa três gerações desse certo cinema gaúcho de Porto Alegre. Começa com a, denominada por mim, Geração Deu pra ti, passa pela Geração Clube Silêncio e alcança a Novíssima Geração. São quase 40 anos de produções, desde o longa-metragem Deu pra ti anos 70, até os filmes Castanha e Rifle, ambos de Davi Pretto, Mulher do Pai, de Cristiane Oliveira, além de Beira Mar e Tinta Bruta, de Marcio Reolon e Filipe Matzembacher. Esse período representa um ciclo que vai desde o rompimento com o cinema chamado de “bombacha e chimarrão”, vigente no Estado até os anos 1970, e o retorno desse certo cinema urbano às paisagens do campo e da fronteira. Mais do que isso, no entanto, os longas-metragens realizador por essas três gerações, de certa forma, servem como espelho de uma Porto Alegre em transformação. Mas, para saber de que transformações estou falando, é preciso ler o livro.