Chico

     A campainha tocou e demorei um pouco para atender. Estendia a roupa no varal e depois fui apressada até o portão. Falando com dificuldade, talvez pela idade ou pela emoção, a senhora de pouca estatura e meio gordinha, de roupas simples, olhou para um pequeno pacote enrolado num jornal amarrado com uma fita mimosa vermelha.

     — A senhora é a professora Marli?

     — Sim, sou eu.

     Parecia querer entregá-lo, mas o segurava com o carinho de quem não queria se desfazer do pacote. Depois de uns minutos de indecisão, perguntei:

     — A senhora quer entrar?

     — Não, imagina, só vim lhe entregar esse pacote. Foi difícil achá-la.

     — Desculpe, é que dou aulas. Às vezes trabalho três turnos seguidos. Como é seu nome?

     — É só um presente.

     Entregou o pacote sem responder minha pergunta, como alguém que se livra de uma dor, de um favor inexplicável, de uma promessa não cumprida, e saiu sem dizer nenhuma palavra, rapidamente, quase correndo – como se fugisse de mim ou do próprio pacote que momentos antes segurava com muito carinho.

     Entrei em casa devagar, olhando ainda para a rua para ver se ela não voltava para explicar um pouco mais o presente que deixara ou o motivo, o nome de quem mandara ou o nome dela.

     Agora eu segurava o pequeno pacote da mesma forma que ela, com cuidado e curiosidade. Sentei-me na sala e coloquei o pacotinho na mesinha do centro. Não entendi bem aquela situação.

     Eu era impulsiva quando se tratava de presentes. Não deixava para abrir depois. Sempre apressava a abertura, rasgando o papel se o adesivo fosse grudento ou cortando a fita se estivesse muito amarrada.

     Mas aquele era diferente. Fora entregue de forma especial e principalmente extrapolou a minha curiosidade. Cheguei a ficar com medo de abri-lo. Deixei-o, atendi o telefone, mas não o afastei do meu olhar.

     Ao finalizar a ligação, peguei o pacotinho novamente, desamarrei a fita vermelha e nele havia um cinzeiro feito de argila com o formato de uma pequena mãozinha. Fiquei arrepiada e abri logo o bilhetinho que estava por baixo. Era do Chico.

     O Chico era uma pessoinha muito especial, da época em que fui dar aulas no colégio de ensino fundamental. Era da sétima série e por motivos de uma doença genética não crescera como qualquer jovem da sua idade.

     Muito querido entre os professores e colegas, era carregado de um lugar para o outro, ou na sua bicicleta especialmente adaptada para ele. Fazia muito tempo que não o via, troquei de escolas várias vezes, novos alunos, novas funções e me culpo por não ter lembrado dele mais vezes.

     Uma vez o encontrei nas olimpíadas das escolas municipais. Na época me contou que já estava cursando o primeiro ano do segundo grau e que nunca esquecera minhas aulas de artes, pois eram as mais divertidas, e onde ele podia viajar e conhecer os artistas. Lembrou que muitos artistas que eu mostrava tinham “defeitos” como ele. Abri o bilhete.

“Querida professora Marli

Estou indo para minha última cirurgia, o médico foi bem sincero e disse que talvez não dê certo. Não tem mais lugar, nem espaço para o meu coração dentro desse corpo pequeno e inútil. Como não sei se vou voltar, resolvi dar minhas coisas que gosto, para pessoas que gosto, esse é o seu presente, por tudo que fez por mim. Chico.”

     As lágrimas não paravam de escorrer pelo meu rosto. Peguei a chave do carro e saí à procura daquela senhora. Lembrei de relance tê-la visto em uma reunião com pais e professores. Virei as quadras, revirei novamente, não a encontrava.

     Fui até a vila da escola, passei devagarzinho por todas as ruas em que supunha ele estivesse morando. Quando ia desistir, vi a senhora entrar numa das casas de uma rua sem saída. Apressei-me, estacionei e bati palmas.

     — Senhora professora, por que veio até aqui?

     — Queria ver o Chico, me despedir. O bilhete dizia que vai fazer nova cirurgia.

     — Já foi professora, foi há cinco anos e o chico não resistiu. Foi difícil encontrar todas pessoas que ele pediu para entregar as coisas dele e eu preciso trabalhar.

     Chocada, caminhei em direção ao carro. Como um robô, dirigi até em casa, fui tomar um banho e chorar debaixo da água quente.

     O presente chegou com cinco anos de atraso. O pequeno Chico não suportara carregar um coração tão grande. Literalmente grande e cheio de amor.

Por Verena Becker

……..

Texto integrante do projeto de exercício literário proposto pela Pragmatha Editora em suas redes sociais. Participe! Em caso de dúvida, converse com a editora Sandra Veroneze pelo email sandra.veroneze@pragmatha.com.br