Suas leituras trazem bem-estar ou ansiedade?

Você já parou para pensar na qualidade dos pensamentos e sentimentos que suas leituras despertam? Elas trazem conforto e bem-estar ou angústia e medo? Quando se trata de notícias e a natural vocação da imprensa popular para tragédias, é bastante comum que leitores moderem e muitas vezes até suprimam o consumo de informações que consideram prejudiciais à saúde mental. Mas na literatura ficcional, como isso se dá?

O filósofo Vitor Lima apresenta um questionamento perspicaz, comparando os romances de formação com as narrativas que usam a estrutura da jornada do herói.

Pausa para conceitos fundamentais:

O romance de formação acompanha o desenvolvimento psicológico, moral e social de um personagem durante um longo período, normalmente da infância ou adolescência à vida adulta ou terceira idade, dando ênfase à subjetividade. Explora aprendizados, desafios, conflitos e marcos temporais que moldam seu caráter, identidade e visão de mundo. Perfeito para romances.

Já a jornada do herói é uma estrutura narrativa que leva o protagonista a sair de seu mundo comum, viver uma aventura e, superados os desafios e colhidos os aprendizados, retornar à realidade cotidiana, desta vez transformado. A ênfase é na ação. Esta estrutura, enquanto ferramenta para escritores, é ótima tanto para romances como contos.

Voltemos.

Em ambos os estilos de narrativa, o leitor estabelece uma relação com os personagens, que pode se dar em diferentes graus e nuances: ama, odeia, torce contra ou a favor, concorda, critica… Mas há uma diferença fundamental: enquanto a jornada do herói é uma linha (não necessariamente reta) que liga um ponto a outro, o romance de formação tem idas e voltas, vazios existenciais, encruzilhadas cujas escolhas não são óbvias. Se a jornada do herói é um suceder de tarefas rumo a um objetivo bem definido, no romance de formação a aventura é para dentro, numa trajetória de autoconhecimento em que os resultados podem não ser exatamente claros.

Um romance de formação estará repleto de amores frustrados, planos que não deram certo, incompreensões diante de dilemas importantes, inseguranças, medos e alguma aventura moldando conquistas e celebrações. A vida se desenrola num complicado sistema de interferências externas, muitas delas alheias à vontade do protagonista, capazes de influenciar sobremaneira o rumo da prosa. Se na jornada do herói ter um objetivo claro e lutar com todas as forças é preceito fundamental para que a narrativa aconteça, num romance de formação é mais provável que o extraordinário assuma outros contornos, com significado apenas para o próprio personagem.

Em resumo, livros são sempre uma excelente companhia e romances de formação e narrativas estruturadas a partir da jornada do herói colaboram para a capacidade imaginativa, senso crítico, desenvolvimento de habilidades cognitivas e qualificação do tempo vago. Enquanto fonte de inspiração e aprendizado, porém, a vida está mais para um romance de formação do que para a jornada do herói. E conseguir estabelecer essa diferença talvez seja o ponto central para permitir que uma leitura nos traga bem-estar ou ansiedade.

Mostro um exemplo. Qual das afirmativas lhe conforta mais:

Alternativa 1: Ao longo de sua vida você encontrará desafios, dificuldades, amará, doerá, será feliz em vários momentos, triste em tantos outros, encontrará o belo, mas também o bruto, e cada experiência, passo a passo, construirá quem você, afinal, irá se tornar.

Alternativa 2: Você é o grande protagonista, herói da sua vida, e só depende de você fazer sua vida grande, significativa e com um legado capaz de influenciar multidões.

Meu palpite: a primeira alternativa parece mais afim com a realidade de todos nós.

De qualquer forma, leia ambos os estilos de narrativa. Adrenalina? Jornada do herói. Conforto humano? Romance de formação. E leia outros estilos de ficção, com outros fins e objetivos. Leia.

Sandra Veroneze

Pragmatha Editora