Quando compreende que escrever não obedece necessariamente aos desígnios da inspiração, o escritor qualifica sua visão do cotidiano. É nele que reside sua maior matéria-prima para contos, poesias, romances. São pessoas, situações, sentimentos e percepções que, ao desfilarem ao seu olhar atento, podem render textos divertidos, profundos, trágicos, dramáticos… Enfim, é toda uma (angustiante, porque infinita) miríade de possibilidades.
Quando eu assessorava uma prefeitura no interior do Rio Grande do Sul, uma das minhas atividades era visitar cada secretaria e coletar os fatos jornalísticos para transformá-los em release e abastecer a imprensa. Quem circula em prefeitura sabe que é um local muito fértil para observar o tipo humano.
Em uma tarde fria, em que o vento nordestão batia portas e janelas, escorei-me num cantinho da recepção da Secretaria de Assistência Social e fiquei no aguardo das minhas fontes. Do ângulo em que estava, podia observar um senhor sentado em frente à estagiária. Ele mostrava alguns papeis, esfregava o rosto, ajeitava o cabelo ensebado… Às vezes, com a calça arregaçada até o joelho, arrastava uma perna, roxa e inchada, de um lado para o outro. Respirava fundo, suspirava. Saía algum gemido vez por outra.
– Taí meu personagem – pensei.
Imaginei como seria a casa dele. Pequena? Perto do mar? Teria um fogão a lenha. Um pequeno pátio, com grama. A julgar pela aparência do dono, acumularia alguns objetos que já deviam ter sido despachados como entulho.
Teria família? Penso que seria uma vida solitária. Acrescentaria alguns cães, sempre companheiros.
Como passaria o tempo? TV seria óbvio demais. Pensei em criar um sujeito deslocado no espaço e que sucumbiu. Não teve forças para peitar, para bancar, quem de fato era… Criei um intelectual, leitor dos clássicos, entregue ao tédio de uma cidade pequena sem nenhuma opção para seu nível de alcance.
Imaginei seu sistema de crenças e valores… Seria um bom sujeito, um bom amigo, prestativo quando necessário, encapsulado em seu mundo… Dono de um bom coração…
Isso aí… Já tinha meu personagem.
Como estava demorando, resolvi ir a outra secretaria para dar prosseguimento ao trabalho. Voltaria depois. No corredor, uma colega me pergunta se está na sala a estagiária da assistência social.
– Sim, está atendendo um senhor de muleta.
– Ah, sei quem é, respondeu ela. É o cara do berne.
Berne eu sabia vagamente o que era, por conta da minha infância vivida no campo. É uma mosca que se aloja e gera uma ferida, com larvas, mais comum em animais, mas que também pode infectar humanos. Tem pus, é nojento mesmo, muito nojento.
– Berne? Como assim? – perguntei.
– Ah, rola uma história de que ele cultiva aquele berne na perna pra receber benefício. Não cura nunca.
Eca, pensei.
E lá se foi meu personagem. Como criar algo mais surpreendente que a própria realidade?
Sandra Veroneze | Editora Pragmatha