A pesquisa sobre o cinema gaúcho que virou documentário, livro e ressignificação existencial

Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre ou como o cinema viu a capital é o livro que o cineasta Boca Migotto está lançando pela Pragmatha Editora. A obra nasce de uma tese de doutorado, porém despida, em alguma medida, da rigidez acadêmica. Nesta entrevista, ele fala sobre o processo de pesquisa, desafio e alegrias encontradas pelo caminho.

Quem é Boca Migotto?

É uma espécie de “elo perdido”, que se esforça pra se reconhecer em algum tempo e espaço. Nasci temporão de pais bem mais velhos, em uma cidade pequena da Serra Gaúcha, que nos anos 80 mais parecia pertencer à Itália que ao Brasil. Não tive irmãos. Minha família era formada por pessoas “velhas”, todos falavam mais o dialeto vêneto do que o próprio português. Meus primos tinham idade para serem meus pais. Obviamente, não havia internet, meu mundo era limitadíssimo. Meus pais não gostavam de viajar, então eu apenas saía daquela pequena cidade se precisasse ir ao médico e, mesmo assim, para cidades próximas, tão pequenas quanto a minha. Cresci no centro da cidade, mas naqueles anos ali havia até galinheiros no quintal das casas. Meu pai era pedreiro e minha mãe “dona de casa”, ou seja, pessoas extremamente simples. Nossa educação, formal ou familiar, nos levava a valorizar essencialmente o trabalho e o sucesso financeiro. Trabalhar na Tramontina, principal empresa da cidade, era o objetivo de toda população. Para isso, no entanto, era preciso quase abrir mão da própria vida. Contrariando todas as tendências, acabei me interessando por questões mais ligadas às artes. Gostava de ler, embora não tanto livros, mas, sim, gibis. Para ler livros foi preciso um certo esforço, pois eu era ansioso demais e isso, claro, era motivo para me enxergarem, na escola, como bagunceiro. Tive a sorte de, embora pedreiro, meu pai ter tido a oportunidade de construir um certo capital que me permitiu alçar alguns voos mais longos. Meu pai quis estudar, mas não pôde, logo, embora super econômico para quase tudo, não poupava esforço ou dinheiro para bancar minha educação. Por fim, o bullying sofrido na escola, também por conta da minha condição humilde, contribuiu para que eu quisesse romper com aquele universo. O resultado disso tudo fez surgir três tendências: 1) trabalhar com coisas ligadas à arte, embora não soubesse, ainda, em que; 2) me importar com as pessoas e com a memória, primeiro dos meus pais, depois da história como um todo; 3) sair daquela cidade onde não conseguiria enxergar mais longe. Obviamente, como me faltou orientação (afinal, por conta de todas essas características descritas acima, também foi preciso eu mesmo ir descobrindo como me realizar) e como faltou, também, quem abrisse as portas fora da pequena Carlos Barbosa, tudo sempre foi muito difícil. Nunca houve um caminho fácil, e continua não havendo. Tudo, sempre, é muito difícil, às vezes até impossível. Mas, aos poucos, fui percebendo que precisava ser teimoso nas minhas decisões. E, por isso, para desistir de algo que eu coloco na cabeça, é preciso que a vida me prove que realmente é algo impossível. Acho que esse é um bom resumo de quem sou.

Por que a escolha por investigar o “cinema gaúcho”?

Bom, depois de compreender os movimentos da vida que me levaram até o cinema e, no cinema, a trabalhar como diretor, principalmente como documentarista, estudar o cinema gaúcho me soa a coisa mais natural nisso tudo. Primeiro, porque eu apenas consigo trabalhar com aquilo que me faz sentido e, assim, me ajuda a me conhecer melhor. Durante os primeiros anos como documentarista fui resgatar histórias dos descendentes italianos no Rio Grande do Sul também para, através dessas abordagens, me conhecer melhor como fruto de tudo que há de bom e de ruim nesse universo da imigração. Num segundo momento, ao ver essa questão já resolvida em mim, foi natural eu olhar para minha própria história em Porto Alegre e documentar o bairro que escolhi para morar. Portanto, estudar o cinema gaúcho é, também, uma forma de me reconhecer nesse processo, nessa história. Claro, isso tudo também é resultado de um movimento voltado à pesquisa, que me fez buscar um mestrado, no qual estudei a Casa de Cinema de Porto Alegre, que me levou a ser professor de cinema por 10 anos. O caminho natural foi buscar um doutorado. Mas, ao me ver pesquisando quatro anos sobre algum tema, esse, necessariamente, precisaria ser algo que estaria próximo a mim. E o cinema gaúcho, além disso tudo, ainda é carente por mais pesquisa, publicações etc. Juntando tudo isso, imagino, consegui realizar algo que me deu e dá prazer, conciliando isso a uma demanda que merece atenção.

Quais foram seus maiores desafios ao longo da jornada?

Acredito que o maior desafio, além, claro, daqueles que já fazem parte, naturalmente, de um processo de pesquisa, foi reunir documentos, fotografias, autorizações de uso de imagens e voz e dos filmes utilizados no documentário que acompanhou a pesquisa. Isso porque, uma vez que havia pouca bibliografia para realizar esse estudo, precisei ir a campo e entrevistar os personagens que faziam parte dessa história. Uma vez que já estava fazendo esse movimento, e já que sou documentarista, decidi transformar o processo em um documentário que, inclusive, será lançado em 2023. Então, não estava apenas fazendo uma pesquisa para o universo acadêmico. Estava fazendo uma pesquisa que, desde sempre, soube que seria publicada em livro e, ao mesmo tempo, soube que seria lançada em forma de filme. Para isso há toda uma burocracia necessária para utilização de trechos de filmes, dos próprios depoimentos etc… e isso foi cansativo, pois se tratou de uma demanda de produção que acompanhou toda a demanda acadêmica já inerente ao processo.

Quais suas maiores alegrias até agora?

O resultado em si. Saber que isso vai para um livro e as pessoas, mesmo quem não faz parte do universo acadêmico, terão acesso. Saber que isso gerou um filme longa-metragem que também vai cumprir seu papel e vai ajudar a contar a história desses últimos 40 anos do cinema gaúcho, história esta que, claro, não se restringe apenas e unicamente ao cinema, mas transita pela própria história da cidade, do Rio Grande do Sul e do Brasil. Isso tudo me deixa muito satisfeito, mas, ainda, tem o retorno positivo que recebi das pessoas que já leram o livro ou viram o último corte do documentário. Enfim, minha preocupação em “errar” o mínimo possível me fez buscar pessoas, além da minha própria orientadora, pois é preciso lembrar que isso tudo tem quase cinco anos de pesquisa acompanhada por trás, que leram o material, viram o filme, questionaram e me ajudaram a qualificar tanto o livro quanto o documentário.

O que mudou em você neste processo de pesquisa?

Essa pergunta é muito difícil de responder. Obviamente, um processo de doutoramento, no qual tu mergulhas num tema por quatro anos, é algo transformador. No entanto, é tanta coisa que está associada a essa pesquisa que eu acho que nem tive tempo, ainda, para refletir sobre isso de uma forma que pudesse apresentar respostas conclusivas. Nesses quatro anos a minha vida não parou em função do doutorado. Nesses quatro anos lancei dois longas-metragens, quatro ou cinco curtas-metragens, entrei e saí de relacionamentos, aprendi francês para realizar parte do doutorado em Paris, tive depressão, saí da depressão, fui demitido, morei um ano na França, voltei de lá em meio a uma pandemia, escrevi parte do texto final trancado em casa, em isolamento, vivi o governo Bolsonaro, extremamente danoso à cultura, conheci minha companheira, a Patricia, e o filho dela, o Arthur, que fizeram toda a diferença na minha vida desde então. Ou seja, é tanta coisa associada à pesquisa em si, e tudo isso, de certa forma, faz parte da pesquisa, até porque esta é um tanto autobiográfica, também, que fica impossível responder uma pergunta dessas a partir, apenas, do processo de doutoramento, São quatro anos de uma vida. Por isso, acredito, apenas poderei responder essa questão daqui alguns anos.