A água começou a bater na cintura

A água começou a bater na cintura e já não havia mais tempo de sair com os pés descalços, sem absorver tudo o que a enxurrada trazia em sua gana feroz de gula insana. Todos os cômodos da casa estavam inundados de um líquido fétido e turvo, como se houvesse se rompido a represa dos segredos mantidos a sete chaves por anos e anos de negação. Tudo parecia vir à tona no instante em que a água ocupava os espaços mínimos da lucidez. O pouco que restara da memória já não era suficiente para encontrar a saída. Cada fresta da parede fora lacrada com ideias num papel, rejeitadas pela ousadia de mostrar traços de arrependimento. Não sucumbiria aos apelos de um medo fora de hora. Ninguém atendera aos chamados quando as portas estavam abertas e a alma estendida no varal. Ninguém viria agora, quando a água já alcançava a cintura e afogava as entranhas de um passado ainda vivo nos rabiscos de silêncios depositados, com cuidado, bem no fundo de uma caixa pintada a mão, nas cores amarela e azul. Tudo se perdia num borrão e naquele cheiro forte que ardia as narinas cansadas de filtrar perfumes baratos nas esquinas de néon. A água, em movimentos bruscos, alcançou o peito. Chegara o fim, afinal…

Por Joseti Gomes

  • Texto integrante dos exercícios literários propostos pela Pragmatha Editora em suas redes sociais aos domingos